terça-feira, 3 de setembro de 2019

Blood On The Dance Floor












Há sangue na pista de dança
Vermelho, quente, denso
Depois da última balada
O último fio de esperança
Consistente e intenso
Foi-se com a estocada

Há sangue pelo chão
Escorrendo sem fim
Da lâmina, pela mão
Gotejando naquela direção
Fluindo de mim
Esvaindo-se em vão

Há sangue na minha mão
Inundando os dedos
Sangue derramado
Calando a última canção
Libertando os medos
Vermelho, encarnado

Sangue na pista de dança
A última balada
Lâmina no chão
Grito de esperança
Canção calada
Sangue pelo chão

domingo, 16 de outubro de 2011

Outra Branca que não é de neve...


Eu não sei por que, mas o seu rosto sempre me chamou a atenção. Tem qualquer coisa de Branca de Neve  ou Alice, um quê de personagem desenhada, planejada, colorida. Não é que seja a personificação da perfeição ou a encarnação de uma princesa encantada de contos de fadas, mas há qualquer coisa lá que parece habitar outro universo.
Seus olhos escuros, tão bem emoldurados por sobrancelhas marcantes, parecem sempre sorrir, com certa ironia, como se vissem alguma coisa que os outros não pudessem ver. Os lábios coloridos parecem um pingo de tinta num esboço em preto e branco. Ah! Que nada! Lá está seu nariz perfeito dando ao seu rosto um ar de certeza, de quem sabe para onde pretende ir. Um nariz que bem pode enfiar-se entre frestas de portas, como curioso que me parece.
É um tal de construir e desconstruir, que  a impressão que me causa é, ao mesmo tempo, querer marcar sua existência, como um risco em vermelho no meio de um padrão descorado, e passar despercebida, como uma pássaro ou uma borboleta passariam.
Sempre metida em cores neutras que parecem não interferir em sua própria cor. O verde oliva, o azul índigo, o preto. Ah! Claro! Tem sempre aquele detalhe vermelho brincando por ali. E postados no chão, seus pés, em seus calçados de batalha, às vezes pesados, às vezes delicados... Hoje, as botas e o meio termo.
Deve ser o cabelo ou a tez clara, mas quanto mais eu penso, mais me parece a tal Branca que era de neve.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Que bicho é esse?


Manuel Bandeira. Poeta modernista. Brasileiro. Poeta do modernismo brasileiro. Poeta livre, plástico, real. Das imagens, da linguagem das imagens.
Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu em 19 de abril de 1886, no Recife. Em 1903 foi para a cidade de São Paulo cursar Engenharia na Escola Politécnica. No entanto, em decorrência do acometimento de tuberculose, não conclui o curso. Passa por verdadeira peregrinação por diversas cidades e casas de saúde, inclusive, se mudando por um ano para a Suíça com o intuito de livrar-se da doença. Ao voltar para o Brasil torna-se inspetor de ensino e depois professor de literatura.
Em 1917 publica seu primeiro livro – A Cinza das Horas – com características parnasianas e simbolistas. Após isto o poeta foi se enquadrando no estilo modernista, culminando com a publicação em 1930 da obra Libertinagem, considerada uma das mais importantes da literatura moderna brasileira.
Em sua obra predomina a liberdade de conteúdo e de forma, o retrato do cotidiano, a sua própria história de vida, o humor, a indignação com a realidade do homem e a idealização de um mundo mais justo. O autor conseguiu reunir em sua poesia subjetividade e objetividade com um resultado muito bom.
No presente trabalho, observaremos a articulação modernista na poesia de Bandeira a partir da observação de um de seus poemas:

O BICHO

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
(BANDEIRA, 1947)

Quando se apanha um poema como “O bicho” nos assalta uma inquietação, uma sensação de que alguma coisa não está certa, o sentimento de que há alguma coisa errada, em princípio com o poema, e em seguida com o mundo a nossa volta.
Entre as novas correntes artísticas estavam o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo; todas elas, vindas com os artistas brasileiros que retornavam da Europa ou divulgadas pela imprensa, influenciaram o Modernismo no Brasil. Ainda de acordo com Afrânio Coutinho, tudo isso foi a forma de reação contra o esgotamento e o cansaço diante do peso da tradição literária ocidental. Significavam um vislumbre do futuro, sendo muitas vezes atitudes violentas de destruição e negação do passado e eram a libertação de todos os limites e configurações tradicionais.
Era contra essa concepção estética que se rebelavam os modernistas, procurando uma solução conciliatória e sincretista. Considerava-se se tinham desenvolvido muito mais as más heranças da prosa simbolista, em detrimento do que poderia ter sido desenvolvido a partir das boas; partindo de publicações iniciadas no começo do século que se tinha por uma assimilação do pior do Simbolismo pelo pior do Parnasianismo, o que se tornou um dos principais alvos dos modernistas.
A rebeldia modernista, já se anunciava desde 1910, através da obra de alguns escritores revoltados contra a rotina, o alheamento da realidade brasileira e tudo aquilo que o movimento modernista ia combater com afinco. Nos últimos anos antes da semana de Arte Moderna (1922), já podiam ser assinalados o espírito de pesquisa, o anseio por novas formas e de novas dimensões estéticas.
A atitude moderna valorizava diversas categorias que a colocava em oposição às épocas antigas. Ao invés da universalidade e do absoluto, importava mais o particular, o local, a circunstância, o pessoal, o subjetivo, o relativo, o detalhe, a multiplicidade; em lugar da permanência, é a mudança, a diversidade, a variedade; à verdade única, muitas verdades; às normas absolutas, o relativismo e a diversidade da experiência artística e dos casos individuais; à estabilidade, o movimento; à Natureza, a natureza humana etc.
Como toda época moderna, se preocupava mais com demolição e substituição dos valores da era anterior, voltando-se para o futuro, em vez imobilizar-se conformada diante das aquisições do passado com se fossem fixas e imutáveis.
O estilo dessa nova poesia, que tem no Simbolismo sua fonte máxima, possui certos traços definidores. É feita de palavras, é a criação poética da linguagem, incorporando ao poético a realidade total.

Mallarmé tinha razão: “Não é com ideias que se fazem versos: é com palavras.” Não que o sentido delas não importe. Importa, mas não como advertiu Gide, independente da sonoridade delas. Naturalmente o sentimento está subentendido, é ele que faz achar as combinações de palavras suscitadoras da emoção poética.
(BANDEIRA, 1986, p. 31)

Stephane Mallarmé (1842-1898) foi um dos fundadores da modernidade nas artes, influenciado por Baudelaire e exerceu grande influência sobre o trabalho de Bandeira. André Paul Guillaume Gide (1869-1951) foi um escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1947, foi o fundador da Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française, era homossexual assumido, falava diretamente em favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e publicado, entre 1910 e 1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo, Corydon. Assim como Bandeira sua obra se articula em torno da busca constante da honestidade intelectual, liberdade e libertação recusando restrições morais e puritanas.
A imundície, os detritos, o bicho... As imagens que o estilo até então não permitia que fossem retratadas e que já encontravam espaço com o realismo, alinhadas com o verso livre – a quebra com a estética vigente – e com a representação da realidade brasileira se moldam neste poema de forma perfeita, transmitindo ao mesmo tempo a insatisfação relativa à realidade em si, devido ao contexto socioeconômico conturbado do Rio de Janeiro do inicio do século XX – numa crescente urbanização que empobrecia as camadas menos favorecidas e criava quadros de pobreza extrema, como o descrito no poema – e a revolução produzida pelo descontentamento com toda a estética literária que se praticava.

O que o século XIX realizou – e o século XX levou ainda mais adiante – foi mudar a base de correlação: tornou-se possível abordar com seriedade temas que até então pertenciam à categoria média ou baixa e tratá-los séria e tragicamente, figurar artisticamente sua essência e seu curso.
(AUERBACH, 2007,p. 309)

E o tal verso livre não foi um aparecimento encantado. A poesia moderna através de experimentações, em principio até mesmo causou confusão e algum desprezo a gêneros, valorizando livre associação de idéias, temas cotidianos, expressões coloquiais e familiares, vulgaridade e desordem lógica. No entanto, a partir daí, sua contribuição foi da maior relevância. A conquista do verso livre; a incorporação do subconsciente; a recriação das palavras constituindo um novo dialeto lírico; a libertação do ritmo e da métrica e, a pesquisa estética livre. Ou como nos diz Bandeira:

 Os modernistas introduziram em nossa poesia o verso-livre, procuraram exprimir-se numa linguagem despojada da eloqüência parnasiana e do vago simbolismo, menos fiel ao vocabulário e a sintaxe clássica portuguesa, menos presa aos ditames da lógica. Ousaram alargar o campo poético, estendendo-se aos aspectos mais prosaicos da vida. Movimento a principio destrutivo e bem caracterizado pela novidade de forma, assumiu mais tarde cor acentuada nacional, buscando interpretar artisticamente o presente e o passado brasileiro
(BANDEIRA, 1960, pp. 509 e 510)

Os modernistas faziam poesia sobre assuntos que antes não eram considerados nobres o suficiente para ser tema de poesia. Temas cotidianos, tratados com expressões e palavras usadas comumente no dia a dia, tornando o poema matéria de fácil reconhecimento para um maior número de pessoas. Desta forma é que os poetas deste período, especialmente Bandeira, tornaram mais amplo o campo poético sobre o qual trabalhava.
A respeito de sua própria conquista do verso livre, disse Bandeira:

O verso verdadeiramente livre foi pra mim uma conquista difícil. O habito do ritmo metrificado, da construção redonda foi-se-me corrigindo lentamente à força de que estranhos dessensibilizantes (...) fui conseguindo libertar-me da força do hábito. Mas não sei se não ficou sempre uma como saudade a repontar aqui e ali... Não me lembro de problemas dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente.
(BANDEIRA, 1986, p.43)

O ritmo metrificado foi aos poucos cedendo, por força dos exercícios de traduções em prosa, especialmente as de Poe por Mallarmé, sem esquecer que Bandeira foi um grande tradutor de poesias, menus, receitas de cozinha, fórmulas de preparados para pele etc.
Tais transformações têm como causa o esgotamento das formas. Manuel Bandeira, bem como seus contemporâneos que viveram e fomentaram o movimento modernista não encontravam mais modo bastante eficaz para manifestarem o que tinham a revelar através do que já havia. A forma impedia que os artistas encontrassem nela consonância para a reprodução de sua visão da realidade, da nova visão em conformidade com a nova concepção da vida e do mundo que experimentavam e aquela alimentavam. Queria-se encontrar uma arte que, sem deixar de refletir o característico da época, fosse genuinamente brasileira.
“Se o Poeta cria algo impossível segundo as regras de sua arte, comete incontestavelmente uma falta; mas ela deixa de ser falta, quando por este meio chega ao fim a que se propôs; porque achou o que procurava.”, nos diz Aristóteles em sua poética clássica. Ao que nos parece, tomando-se por base O Bicho, Bandeira consegue perfeitamente alcançar aquilo a que se propunha.
Poeta das imagens descreve-nos com cuidado e intencionalmente um quadro cotidiano com a intenção de nos causar incômodo, inquietação e suscitar reflexão. É assim em muitos dos textos do poeta. A poesia aparentemente ingênua de Bandeira é construída para a inauguração de um mundo novo. Um mundo mais amplo que o mundo dos literatos e da literatura onde ele se construiu. Sua linguagem simples, que visa o homem simples, funda-se no ideal de construção de uma nova sociedade que tem no modernismo um de seus ramos.
Escapando das linguagens tradicionais instituídas até então, Manuel Bandeira se apropria de outras linguagens que se tornam possíveis quando se deixa de tentar falar apenas para círculos literários fechados, feitos de leitores iniciados em gêneros canonizados, para então se dirigir a leitores comuns. A poesia de Bandeira dirige-se a um público mais amplo, de leitores não iniciados. Escrita em linguagem simples, permanece poesia. Daí, seus múltiplos sentidos, muitas vezes sentidos propositalmente escondidos, ocultos.
Bandeira é testemunha de seu tempo e de suas aflições sociais. Com aparente singeleza, produz um poema que emociona e desperta para a reflexão, para questões necessárias. Do conflito entre o que era permitido socialmente e o desejado no intimo nasce o sonho, o desejo, o objeto de organização de sua poesia e a proposta de uma nova realidade socialmente mais justa e de sentimentos mais profundos. Embora os temas do dia a dia entremeiem sua poesia, é resultado de pesquisa, análise profunda da língua. 
A harmonia do poema, que apresenta-nos um desconserto, um desarranjo da ordem social, de tal forma que o homem apresenta-se como o animal, o bicho, desprovido de razão e de consciência. Assim por baixo da superfície simples do poema se apresenta uma organização complexa e rigorosa, uma tentativa da poesia de recompor uma ordem natural que se encontra oculta nas significações do poema e que na realidade está arruinada. 
No poema “O bicho” o texto se apresenta sob uma forma não-fixa e não-tradicional. Apresenta apenas duas palavras de língua culta (detritos e voracidade) e nos restante, como de costume em um texto modernista, o nível de linguagem é o coloquial. Ou seja, uma linguagem próxima, bem próxima do povo.
Bandeira constrói o poema estruturando cena a cena a trama, revelando-a aos poucos o enredo, para somente no final, com emoção e algum suspense, revelar quem é o bicho do qual está falando.
O poeta guia-nos por uma trilha especialmente articulada: o testemunho do fato, quando este ocorreu, quem motiva a escrita do poema, o lugar onde o fato se dá, a descrição da ação central, o momento em que os atos aconteciam no tempo, o modo como o ser observado agia, a sustentação do suspense com o descarte de quem não era o bicho e por fim a conclusão, com a invocação de Deus e, no ápice da emoção e do sentimento, a revelação.
Resta-nos o motivo, o porquê do poema. Tudo reside na significação do próprio texto, mais ou menos explicito, que nos leva a indagar o porquê do titulo “O bicho”? O ser humano enfocado no poema, em razão de uma conjunção de fatores, que provavelmente vão desde uma sem conta de problemas sociais até problemas familiares, encontra-se abandonado à própria sorte. Não se trata de um tema fictício naquela época a denúncia social. É o ser marginalizado e animalizado; degradado física, psicológica e socialmente; assumindo atitudes de bicho.
A vocação para a poesia veio para Manuel Bandeira como fatalidade, assim como a tuberculose, mas também como necessidade para vencer o sentimento de inutilidade. Além disso, tanto uma quanto outra lhe exigiram disciplina e humildade.

O processo artístico requer uma elaboração de temas, um processo de seleção, que enfatiza certos aspectos da vida interior do artista e deixa outros de lado.
(AUERBACH, 2007,p. 310)

A experiência da doença o fez conduzir a vida para um real compromisso com a poesia. Seu projeto poético foi, portanto, a chave para a superação de sua condição de tísico. Nas palavras do próprio poeta: "A arte é uma fada que transmuta / E transfigura o mau destino.".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. 1º edição. Rio de Janeiro: Duas Cidades/34, 2007.
BANDEIRA, Manuel. Noções de História da Literatura. 5º edição. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura S.A.. Junho, 1960.
__________________. MORAES, Emanuel de (org.). Seleta em Prosa e Verso. 4º edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986.
__________________. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.
__________________. Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 19º edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. 2º edição. São Paulo: Perspectiva, 2002.
PEREIRA, Rogério Silva. ZAMPIERI, Aline Câmara. (UFGD) Idéias e instituições: imagens do intelectual na poesia de Manuel Bandeira. Disponível em: <http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/Aline%20C%20Zampieri.pdf>. Acesso em 21 de Junho de 2010.
RODRIGUES, Alcir de Vasconcelos Alvarez. O Poema 'O Bicho', publicado 4/10/2008. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/9839/1/O-Poema-O-Bicho/pagina1.html#ixzz0rKR6fn89>. Acesso em 22 de Junho de 2010.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Normas para a Apresentação de Referências em Documentos Técnico-científicos ABNT-NBR 6023). Disponível em: < http://www.if.ufrgs.br/bib/referencias.html>. Acesso em: 06 de Abril. 2010.

domingo, 2 de outubro de 2011

O bicho



"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."

Manuel Bandeira


Ontem, dia cinzento e modorrento, andando através das calçadas irregulares, vi um bicho na imundície do pátio. Inclinado, curvado, catando comida entre os detritos. Os cabelos amarelecidos, alguma coisa envelhecida e suja, tinham presos em seus fios umas coisas que não saberia dizer o que eram. Restos do que por ali podem ter passado, vestígios de noites sobre a relva ou o asfalto imundo. Sua pele encarquilhada, acinzentada, envelhecida, mais parecendo uma carapaça que ali se formou a força de proteger-se do frio e do calor.   Na extremidade dos braços raquíticos, algo semelhante a mãos, arquétipos desajeitados providos de cinco hastes móveis... Dedos? Ossos cobertos daquela pele escamosa que apenas forra-os como se não tivessem nenhuma carne e nas pontas, pedaços do que um dia pôde ser chamado de unhas, carcomidos, desgastados, guardam embaixo de si uma camada grossa e escura de sujidade.
Quando achava alguma coisa, não examinava, nem cheirava, engolia com voracidade. Os olhos, com um brilho irracional, arregalados, impressionados, pareciam gritar o que sua boca descorada e enrugada já não podia mais. Pupilas dilatadas que deixavam aqueles olhos escuros ainda mais assustadores, ameaçadores, assustados, acuados. A boca que se abria com angustiosa ansiedade, espichando as lascas de pele ressequidas que a cobriam, deixava a mostra aqueles montes de tecido mucoso avermelhado, ferido, escurecido, de onde pendiam aqui e ali uns pedaços de dente amarelo escuro, alguns quase pretos. No esforço de uma mastigação, as murchas maças do rosto se moviam brevemente, sacudindo a pele flácida em torno de si e dava para observar a comida descer com dificuldade pela garganta desacostumada, provocando ondas no pescoço sujo e ferido.
O bicho não era um cão, embora sua pele parecesse sarnenta e o seu cheiro lembrasse um cão vagabundo que apanhara demasiados sol e chuva e que, havia muito tempo, não se banhava. Não era um gato, por que se o fosse, ao menos teria a habilidade de banhar a si mesmo e caçar algum roedor, o que daria jeito na magreza e fraqueza extrema que lhe acometiam. Não era um rato, apesar de seus movimentos nervosos e do modo como roia todo o alimento encontrado lembrasse demais as ratazanas de esgoto que correm pelas ruas da cidade quando tudo o mais fica quieto. Em tudo se parecia com um animal selvagem, desde aquele olhar inanimado que parecia ter deixado de enxergar sem ter deixado de ver, até sua postura quadrúpede. Não, o bicho não era nada disso.
O bicho, meu Deus, era um homem. Um homem que não vê mais sua humanidade e regrediu até onde era possível. Homem sem casa, sem família, sem passado e sem futuro. Que só é homem por que nasceu como tal, mas que hoje, olhando de onde eu olhei, é mais um bicho que parece homem que um homem parecendo um bicho... 

*reescritura narrativa do poema "O bicho" - Manuel Bandeira

sábado, 1 de outubro de 2011

Duas Prostitutas, Duas Mulheres, Duas Histórias.



No conto Bola de Sebo, de Guy de Maupassant e em Lucíola de Jose de Alencar o tem gira em torno de uma prostituta. As duas personagens dão nome as tramas em questão e, já pelos seus títulos, podemos perceber as diferenças na abordagem e no tratamento dado as personagens.
Bola de Sebo é um romance realista que conta da viajem de um grupo de dez pessoas que durante a invasão de Paris, durante a guerra franco-prussiana. Dentre estas pessoas encontra-se Bola de Sebo, uma prostituta assim apelidada por sua constituição física, como podemos observar:
“A mulher, uma dessas chamadas galantes, era célebre por sua gordura precoce, que lhe valera o apelido de Bola de Sebo. Miúda, redondinha, gordinha com dedos rechonchudos estrangulados nas falanges como fieira de curtas salsichas, com uma tez luzidia e tensa, o seio enorme a rebentar a blusa, era, no entanto, apetitosa e desejada, de tal modo agradava à vista o seu frescor.”
(2002, p.18)
Esta prostituta é em principio hostilizada por aqueles que viajam junto com ela, até que, sendo a única que levava algum alimento naquela viajem, oferece compartilhar a comida que tem, com todos.
“Obrigados” pela atitude de Bola de Sebo, até mesmo os mais resistentes acabam por admitir sua existência entre eles, conversam e passam também a vê-la como uma pessoa, tal como eles.
Mais tarde, porém, quando são detidos por um oficial prussiano que impede que prossigam e por condição para que sigam a viagem dormir com Bola de Sebo. Assim que os outros tomam conhecimento disso, e percebem que a prostituta, por questões de principio, se nega a acatar tal condição, retornam em sua revolta e hostilidade. Depois de alguma resistência, e utilizando até mesmo de chantagem, o grupo acaba “forçando” Bola de Sebo a acatar o que a condição do oficial.
No fim, quando são liberados, voltam a tratar a prostituta com frieza e desprezo, tanto que ao saíram levando comida, a prostituta, constrangida e apressada esquecera-se de apanhar alimento e seus companheiros de viajem nada lhe ofertam. Ela por fim, chora sentindo-se desprezada e usada, como observamos na seguinte passagem: “Ninguém a olhava, ninguém se importava com ela. Sentia-se afogada no desprezo daqueles honestos crápulas, que primeiro a haviam sacrificado, e rejeitado depois, como uma coisa indecente e inútil.” (2002, p.43).
Lucíola, por sua vez é um romance romântico, contado através das cartas de Paulo a uma senhora. Aqui, temos a figura da prostituta regenerada, o que era comum no período romântico francês e que influenciou grandemente os autores brasileiros. Através de tais cartas, Paulo conta a senhora sua historia de amo com Lúcia, que teria acontecido seis anos antes.
Desde que a conhece, Paulo se vê encantado com a moça, mais tarde ao reencontrá-la, descobre tratar-se de uma prostituta. Após esse evento Paulo torna a procurá-la desejando-a. Ela o rejeita em principio, mas acaba cedendo.
Paulo recebe as piores referencias com relação à Lúcia. Paulo fica divido entre o amor arrebatador que passa a sentir o preconceito imbuído nele pelo pensamento da sociedade da época, que com hipocrisia, via a prostituta como um ser marginalizado e impuro, sem, no entanto deixar de “utilizar” de seus serviços.
Aos poucos e pelo amor que Paulo lhe desperta, Lúcia vai transformando-se de uma prostituta libertina, que aprecia o luxo e tudo quanto seus amantes podem lhe dar, em uma criatura frágil e assumindo, ela também os preconceitos da sociedade, deixando a sim a vida que levava anteriormente.
Paulo passa a praticamente viver com ela e se torna alvo de comentários e censuras. A sociedade comenta o fato de Paulo viver à custa da prostituta e também o fato de tê-la afastado da “vida em sociedade”.
Lúcia acaba retornando a vida mundana, mas já sem o mesmo apreço de antes. Paulo não compreende as atitudes dela. Mais tarde ela vai revelar-se suas origens e como inicio sua vida na prostituição, por causa de um surto de febre amarela que acometeu sua família.
Conta a ele que foi expulsa de casa e acolhida por uma mulher que lhe inicio na prostituição e, possuía uma amiga, uma companheira e que quando esta morreu, decidiu assumir-lhe o nome: Lúcia. Conta também que todo o direito que ganha, ela guarda para futuramente poder dá-lo com dote da irmã Ana, de quem se tornou responsável após a morte dos pais. Assim, ele passa a compreender melhor as contradições e dualidades dela e ama-la de forma sincera.
Porém, a este ponto, Lúcia já havia tomado a decisão de abandonar a vida de libertinagem e para tanto assume que precisa, inclusive, abrir mão do sentimento que a une a Paulo. Vai morar em uma casa afastada com a irmã mais nova.
Paulo ainda tenta recuperar seu amor, mas ela se recusa. Propõe a ele que se case com sua irmã, mas ele recusa incrédulo!
Lúcia aborta um filho que estava esperando de Paulo, mas se recusa a retirar o feto já morto. Acaba morrendo nos braços de seu amor e como ultimo pedido, pede que ele cuide de sua irmã Ana, o que ele confirma que fará no final das cartas recebidas pela senhora.
Como dito no principio, temos duas narrativas que tratam do mesmo tema, porém de perspectivas diferente. Embora em ambos se retrate o preconceito da sociedade, não só quanto a posição feminina na sociedade, como também e principalmente, com relação a figura da prostituta. Nas duas narrativas há um forte preconceito, bem como uma grande hipocrisia no tratamento dado à prostituta.
Age-se como se fossem pessoas menores, sem mérito e até mesmo impuras, porém também é possível identificar uma visão machista que não se importa em fazer uso dos serviços oferecidos por essas mesmas mulheres, desde que fique bem delimitado o lugar delas em relação às “mulheres de respeito”.
Muito embora as duas tramas se toquem neste ponto, se afastam quando descrevem suas personagens.
Enquanto Bola de Sebo, Elizabeth Rousset é uma mulher forte, descrita de maneira realística. Retratada da forma que é, sem que nenhum floreio ou contorno poético seja dado a sua pessoa, nem como prostituta, nem como mulher. É apresentada com seus princípios e suas falhas, assim como ela os demonstra. É uma prostituta, não deseja não sê-lo, não vê nisso nada de pecaminoso ou impuro. Ela é mostrada como é e, apenas é o que é.
Já em Lucíola, a prostituta Lúcia é apresentada de um ângulo muito diverso. Praticamente obrigada a vida da prostituição, possui internalizado o mesmo preconceito social vigente em sua época. É uma pessoa ressentida e dilacerada pelos sentimentos de culpa e até mesmo, em certo ponto, sente-se indigna e impura.
Lúcia é mostrada através da ótica do romantismo, busca por regeneração e redenção, que lhe é concedida, pelo autor, no final da obra, através de sua morte. Morte essa que também denota um traço do romance romântico, onde os amantes preferem-na à impossibilidade de viverem seu amor.
Além de envolta pelo véu do amor sublimado, irrealizado, retratado no romance, Lúcia não é completamente verdadeira, visto que intimamente, parece lutar contra sua condição de prostituta, o que a leva no final da trama a abdicar desta vida, buscando tornar-se “uma pessoa melhor”, mais pura e mais digna.
Nenhuma dessas perturbações povoa a mente de Bola de Sebo. Ela é ocupada pelos sentimentos que todos os seus contemporâneos têm com relação à situação vivida por seu país e sua cidade, além de possuir sentimentos humanos comuns a quaisquer pessoas.
Em suma, temos a figura de duas prostitutas, porém, uma delas retratada de maneira idealizada, com moralismo, na intenção reforçar os valores da época, a ética, os bons costumes; outra retratada com realismo, com verdade, sendo uma pessoa do jeito que é.

Referências bibliográficas

ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Escala, 2008.
MAUPASSANT, Guy de. Bola de Sebo e Outros Contos. São Paulo: Martin Claret, 2003.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Queria sair daqui...


Sinto-me oprimida diante de tantas mentes sagazes... Adultos em uma louca corrida rumo a lugar nenhum. Querem ganhar mais dinheiro e querem ter mais poder. Olham-me de cima, como se eu fosse algum animal abjeto que interrompe o caminho. Eu sorrio de minha infantil insignificância. Eu vejo o mundo deles e seus desejos insanos... Prefiro continuar aqui, sendo arlequim e motivo de seu escárnio. Meu coração pulsa enquanto os seus apodrecem...

sábado, 30 de julho de 2011

Despertei!

Estive congelada pelos últimos dez anos.
Perdi uma parte da juventude, não vi passarem as estações.
Meu coração parou, minha alma hibernou
Estive a espera de alguém que não chegou
Eu sonhei um sonho estranho, um pesadelo
Onde eu não cresci, nem vivia, nem amava, nem sofria
Despertei num corpo estranho, num tempo estranho
Meus olhos não reconheciam os quadros
Nem as pessoas, nem a língua
Adormeci nos meus sonhos de menina
Para despertar nos tormentos de mulher