terça-feira, 4 de outubro de 2011

Que bicho é esse?


Manuel Bandeira. Poeta modernista. Brasileiro. Poeta do modernismo brasileiro. Poeta livre, plástico, real. Das imagens, da linguagem das imagens.
Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu em 19 de abril de 1886, no Recife. Em 1903 foi para a cidade de São Paulo cursar Engenharia na Escola Politécnica. No entanto, em decorrência do acometimento de tuberculose, não conclui o curso. Passa por verdadeira peregrinação por diversas cidades e casas de saúde, inclusive, se mudando por um ano para a Suíça com o intuito de livrar-se da doença. Ao voltar para o Brasil torna-se inspetor de ensino e depois professor de literatura.
Em 1917 publica seu primeiro livro – A Cinza das Horas – com características parnasianas e simbolistas. Após isto o poeta foi se enquadrando no estilo modernista, culminando com a publicação em 1930 da obra Libertinagem, considerada uma das mais importantes da literatura moderna brasileira.
Em sua obra predomina a liberdade de conteúdo e de forma, o retrato do cotidiano, a sua própria história de vida, o humor, a indignação com a realidade do homem e a idealização de um mundo mais justo. O autor conseguiu reunir em sua poesia subjetividade e objetividade com um resultado muito bom.
No presente trabalho, observaremos a articulação modernista na poesia de Bandeira a partir da observação de um de seus poemas:

O BICHO

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
(BANDEIRA, 1947)

Quando se apanha um poema como “O bicho” nos assalta uma inquietação, uma sensação de que alguma coisa não está certa, o sentimento de que há alguma coisa errada, em princípio com o poema, e em seguida com o mundo a nossa volta.
Entre as novas correntes artísticas estavam o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo; todas elas, vindas com os artistas brasileiros que retornavam da Europa ou divulgadas pela imprensa, influenciaram o Modernismo no Brasil. Ainda de acordo com Afrânio Coutinho, tudo isso foi a forma de reação contra o esgotamento e o cansaço diante do peso da tradição literária ocidental. Significavam um vislumbre do futuro, sendo muitas vezes atitudes violentas de destruição e negação do passado e eram a libertação de todos os limites e configurações tradicionais.
Era contra essa concepção estética que se rebelavam os modernistas, procurando uma solução conciliatória e sincretista. Considerava-se se tinham desenvolvido muito mais as más heranças da prosa simbolista, em detrimento do que poderia ter sido desenvolvido a partir das boas; partindo de publicações iniciadas no começo do século que se tinha por uma assimilação do pior do Simbolismo pelo pior do Parnasianismo, o que se tornou um dos principais alvos dos modernistas.
A rebeldia modernista, já se anunciava desde 1910, através da obra de alguns escritores revoltados contra a rotina, o alheamento da realidade brasileira e tudo aquilo que o movimento modernista ia combater com afinco. Nos últimos anos antes da semana de Arte Moderna (1922), já podiam ser assinalados o espírito de pesquisa, o anseio por novas formas e de novas dimensões estéticas.
A atitude moderna valorizava diversas categorias que a colocava em oposição às épocas antigas. Ao invés da universalidade e do absoluto, importava mais o particular, o local, a circunstância, o pessoal, o subjetivo, o relativo, o detalhe, a multiplicidade; em lugar da permanência, é a mudança, a diversidade, a variedade; à verdade única, muitas verdades; às normas absolutas, o relativismo e a diversidade da experiência artística e dos casos individuais; à estabilidade, o movimento; à Natureza, a natureza humana etc.
Como toda época moderna, se preocupava mais com demolição e substituição dos valores da era anterior, voltando-se para o futuro, em vez imobilizar-se conformada diante das aquisições do passado com se fossem fixas e imutáveis.
O estilo dessa nova poesia, que tem no Simbolismo sua fonte máxima, possui certos traços definidores. É feita de palavras, é a criação poética da linguagem, incorporando ao poético a realidade total.

Mallarmé tinha razão: “Não é com ideias que se fazem versos: é com palavras.” Não que o sentido delas não importe. Importa, mas não como advertiu Gide, independente da sonoridade delas. Naturalmente o sentimento está subentendido, é ele que faz achar as combinações de palavras suscitadoras da emoção poética.
(BANDEIRA, 1986, p. 31)

Stephane Mallarmé (1842-1898) foi um dos fundadores da modernidade nas artes, influenciado por Baudelaire e exerceu grande influência sobre o trabalho de Bandeira. André Paul Guillaume Gide (1869-1951) foi um escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1947, foi o fundador da Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française, era homossexual assumido, falava diretamente em favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e publicado, entre 1910 e 1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo, Corydon. Assim como Bandeira sua obra se articula em torno da busca constante da honestidade intelectual, liberdade e libertação recusando restrições morais e puritanas.
A imundície, os detritos, o bicho... As imagens que o estilo até então não permitia que fossem retratadas e que já encontravam espaço com o realismo, alinhadas com o verso livre – a quebra com a estética vigente – e com a representação da realidade brasileira se moldam neste poema de forma perfeita, transmitindo ao mesmo tempo a insatisfação relativa à realidade em si, devido ao contexto socioeconômico conturbado do Rio de Janeiro do inicio do século XX – numa crescente urbanização que empobrecia as camadas menos favorecidas e criava quadros de pobreza extrema, como o descrito no poema – e a revolução produzida pelo descontentamento com toda a estética literária que se praticava.

O que o século XIX realizou – e o século XX levou ainda mais adiante – foi mudar a base de correlação: tornou-se possível abordar com seriedade temas que até então pertenciam à categoria média ou baixa e tratá-los séria e tragicamente, figurar artisticamente sua essência e seu curso.
(AUERBACH, 2007,p. 309)

E o tal verso livre não foi um aparecimento encantado. A poesia moderna através de experimentações, em principio até mesmo causou confusão e algum desprezo a gêneros, valorizando livre associação de idéias, temas cotidianos, expressões coloquiais e familiares, vulgaridade e desordem lógica. No entanto, a partir daí, sua contribuição foi da maior relevância. A conquista do verso livre; a incorporação do subconsciente; a recriação das palavras constituindo um novo dialeto lírico; a libertação do ritmo e da métrica e, a pesquisa estética livre. Ou como nos diz Bandeira:

 Os modernistas introduziram em nossa poesia o verso-livre, procuraram exprimir-se numa linguagem despojada da eloqüência parnasiana e do vago simbolismo, menos fiel ao vocabulário e a sintaxe clássica portuguesa, menos presa aos ditames da lógica. Ousaram alargar o campo poético, estendendo-se aos aspectos mais prosaicos da vida. Movimento a principio destrutivo e bem caracterizado pela novidade de forma, assumiu mais tarde cor acentuada nacional, buscando interpretar artisticamente o presente e o passado brasileiro
(BANDEIRA, 1960, pp. 509 e 510)

Os modernistas faziam poesia sobre assuntos que antes não eram considerados nobres o suficiente para ser tema de poesia. Temas cotidianos, tratados com expressões e palavras usadas comumente no dia a dia, tornando o poema matéria de fácil reconhecimento para um maior número de pessoas. Desta forma é que os poetas deste período, especialmente Bandeira, tornaram mais amplo o campo poético sobre o qual trabalhava.
A respeito de sua própria conquista do verso livre, disse Bandeira:

O verso verdadeiramente livre foi pra mim uma conquista difícil. O habito do ritmo metrificado, da construção redonda foi-se-me corrigindo lentamente à força de que estranhos dessensibilizantes (...) fui conseguindo libertar-me da força do hábito. Mas não sei se não ficou sempre uma como saudade a repontar aqui e ali... Não me lembro de problemas dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente.
(BANDEIRA, 1986, p.43)

O ritmo metrificado foi aos poucos cedendo, por força dos exercícios de traduções em prosa, especialmente as de Poe por Mallarmé, sem esquecer que Bandeira foi um grande tradutor de poesias, menus, receitas de cozinha, fórmulas de preparados para pele etc.
Tais transformações têm como causa o esgotamento das formas. Manuel Bandeira, bem como seus contemporâneos que viveram e fomentaram o movimento modernista não encontravam mais modo bastante eficaz para manifestarem o que tinham a revelar através do que já havia. A forma impedia que os artistas encontrassem nela consonância para a reprodução de sua visão da realidade, da nova visão em conformidade com a nova concepção da vida e do mundo que experimentavam e aquela alimentavam. Queria-se encontrar uma arte que, sem deixar de refletir o característico da época, fosse genuinamente brasileira.
“Se o Poeta cria algo impossível segundo as regras de sua arte, comete incontestavelmente uma falta; mas ela deixa de ser falta, quando por este meio chega ao fim a que se propôs; porque achou o que procurava.”, nos diz Aristóteles em sua poética clássica. Ao que nos parece, tomando-se por base O Bicho, Bandeira consegue perfeitamente alcançar aquilo a que se propunha.
Poeta das imagens descreve-nos com cuidado e intencionalmente um quadro cotidiano com a intenção de nos causar incômodo, inquietação e suscitar reflexão. É assim em muitos dos textos do poeta. A poesia aparentemente ingênua de Bandeira é construída para a inauguração de um mundo novo. Um mundo mais amplo que o mundo dos literatos e da literatura onde ele se construiu. Sua linguagem simples, que visa o homem simples, funda-se no ideal de construção de uma nova sociedade que tem no modernismo um de seus ramos.
Escapando das linguagens tradicionais instituídas até então, Manuel Bandeira se apropria de outras linguagens que se tornam possíveis quando se deixa de tentar falar apenas para círculos literários fechados, feitos de leitores iniciados em gêneros canonizados, para então se dirigir a leitores comuns. A poesia de Bandeira dirige-se a um público mais amplo, de leitores não iniciados. Escrita em linguagem simples, permanece poesia. Daí, seus múltiplos sentidos, muitas vezes sentidos propositalmente escondidos, ocultos.
Bandeira é testemunha de seu tempo e de suas aflições sociais. Com aparente singeleza, produz um poema que emociona e desperta para a reflexão, para questões necessárias. Do conflito entre o que era permitido socialmente e o desejado no intimo nasce o sonho, o desejo, o objeto de organização de sua poesia e a proposta de uma nova realidade socialmente mais justa e de sentimentos mais profundos. Embora os temas do dia a dia entremeiem sua poesia, é resultado de pesquisa, análise profunda da língua. 
A harmonia do poema, que apresenta-nos um desconserto, um desarranjo da ordem social, de tal forma que o homem apresenta-se como o animal, o bicho, desprovido de razão e de consciência. Assim por baixo da superfície simples do poema se apresenta uma organização complexa e rigorosa, uma tentativa da poesia de recompor uma ordem natural que se encontra oculta nas significações do poema e que na realidade está arruinada. 
No poema “O bicho” o texto se apresenta sob uma forma não-fixa e não-tradicional. Apresenta apenas duas palavras de língua culta (detritos e voracidade) e nos restante, como de costume em um texto modernista, o nível de linguagem é o coloquial. Ou seja, uma linguagem próxima, bem próxima do povo.
Bandeira constrói o poema estruturando cena a cena a trama, revelando-a aos poucos o enredo, para somente no final, com emoção e algum suspense, revelar quem é o bicho do qual está falando.
O poeta guia-nos por uma trilha especialmente articulada: o testemunho do fato, quando este ocorreu, quem motiva a escrita do poema, o lugar onde o fato se dá, a descrição da ação central, o momento em que os atos aconteciam no tempo, o modo como o ser observado agia, a sustentação do suspense com o descarte de quem não era o bicho e por fim a conclusão, com a invocação de Deus e, no ápice da emoção e do sentimento, a revelação.
Resta-nos o motivo, o porquê do poema. Tudo reside na significação do próprio texto, mais ou menos explicito, que nos leva a indagar o porquê do titulo “O bicho”? O ser humano enfocado no poema, em razão de uma conjunção de fatores, que provavelmente vão desde uma sem conta de problemas sociais até problemas familiares, encontra-se abandonado à própria sorte. Não se trata de um tema fictício naquela época a denúncia social. É o ser marginalizado e animalizado; degradado física, psicológica e socialmente; assumindo atitudes de bicho.
A vocação para a poesia veio para Manuel Bandeira como fatalidade, assim como a tuberculose, mas também como necessidade para vencer o sentimento de inutilidade. Além disso, tanto uma quanto outra lhe exigiram disciplina e humildade.

O processo artístico requer uma elaboração de temas, um processo de seleção, que enfatiza certos aspectos da vida interior do artista e deixa outros de lado.
(AUERBACH, 2007,p. 310)

A experiência da doença o fez conduzir a vida para um real compromisso com a poesia. Seu projeto poético foi, portanto, a chave para a superação de sua condição de tísico. Nas palavras do próprio poeta: "A arte é uma fada que transmuta / E transfigura o mau destino.".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. 1º edição. Rio de Janeiro: Duas Cidades/34, 2007.
BANDEIRA, Manuel. Noções de História da Literatura. 5º edição. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura S.A.. Junho, 1960.
__________________. MORAES, Emanuel de (org.). Seleta em Prosa e Verso. 4º edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986.
__________________. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.
__________________. Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 19º edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. 2º edição. São Paulo: Perspectiva, 2002.
PEREIRA, Rogério Silva. ZAMPIERI, Aline Câmara. (UFGD) Idéias e instituições: imagens do intelectual na poesia de Manuel Bandeira. Disponível em: <http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/Aline%20C%20Zampieri.pdf>. Acesso em 21 de Junho de 2010.
RODRIGUES, Alcir de Vasconcelos Alvarez. O Poema 'O Bicho', publicado 4/10/2008. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/9839/1/O-Poema-O-Bicho/pagina1.html#ixzz0rKR6fn89>. Acesso em 22 de Junho de 2010.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Normas para a Apresentação de Referências em Documentos Técnico-científicos ABNT-NBR 6023). Disponível em: < http://www.if.ufrgs.br/bib/referencias.html>. Acesso em: 06 de Abril. 2010.

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