domingo, 2 de outubro de 2011

O bicho



"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."

Manuel Bandeira


Ontem, dia cinzento e modorrento, andando através das calçadas irregulares, vi um bicho na imundície do pátio. Inclinado, curvado, catando comida entre os detritos. Os cabelos amarelecidos, alguma coisa envelhecida e suja, tinham presos em seus fios umas coisas que não saberia dizer o que eram. Restos do que por ali podem ter passado, vestígios de noites sobre a relva ou o asfalto imundo. Sua pele encarquilhada, acinzentada, envelhecida, mais parecendo uma carapaça que ali se formou a força de proteger-se do frio e do calor.   Na extremidade dos braços raquíticos, algo semelhante a mãos, arquétipos desajeitados providos de cinco hastes móveis... Dedos? Ossos cobertos daquela pele escamosa que apenas forra-os como se não tivessem nenhuma carne e nas pontas, pedaços do que um dia pôde ser chamado de unhas, carcomidos, desgastados, guardam embaixo de si uma camada grossa e escura de sujidade.
Quando achava alguma coisa, não examinava, nem cheirava, engolia com voracidade. Os olhos, com um brilho irracional, arregalados, impressionados, pareciam gritar o que sua boca descorada e enrugada já não podia mais. Pupilas dilatadas que deixavam aqueles olhos escuros ainda mais assustadores, ameaçadores, assustados, acuados. A boca que se abria com angustiosa ansiedade, espichando as lascas de pele ressequidas que a cobriam, deixava a mostra aqueles montes de tecido mucoso avermelhado, ferido, escurecido, de onde pendiam aqui e ali uns pedaços de dente amarelo escuro, alguns quase pretos. No esforço de uma mastigação, as murchas maças do rosto se moviam brevemente, sacudindo a pele flácida em torno de si e dava para observar a comida descer com dificuldade pela garganta desacostumada, provocando ondas no pescoço sujo e ferido.
O bicho não era um cão, embora sua pele parecesse sarnenta e o seu cheiro lembrasse um cão vagabundo que apanhara demasiados sol e chuva e que, havia muito tempo, não se banhava. Não era um gato, por que se o fosse, ao menos teria a habilidade de banhar a si mesmo e caçar algum roedor, o que daria jeito na magreza e fraqueza extrema que lhe acometiam. Não era um rato, apesar de seus movimentos nervosos e do modo como roia todo o alimento encontrado lembrasse demais as ratazanas de esgoto que correm pelas ruas da cidade quando tudo o mais fica quieto. Em tudo se parecia com um animal selvagem, desde aquele olhar inanimado que parecia ter deixado de enxergar sem ter deixado de ver, até sua postura quadrúpede. Não, o bicho não era nada disso.
O bicho, meu Deus, era um homem. Um homem que não vê mais sua humanidade e regrediu até onde era possível. Homem sem casa, sem família, sem passado e sem futuro. Que só é homem por que nasceu como tal, mas que hoje, olhando de onde eu olhei, é mais um bicho que parece homem que um homem parecendo um bicho... 

*reescritura narrativa do poema "O bicho" - Manuel Bandeira

Nenhum comentário: